Cidade preto e branca

Posted by Gustavo Aguiar On quarta-feira, 27 de janeiro de 2010 0 comentários


Está chovendo. Noite abafada pelo vapor.

Saio às ruas sem guarda-chuva para sentir as agulhadas pesadas que despencam da escuridão infinita lá de cima, minhas mãos procuram os bolsos laterais da jaqueta de couro e enterro meu queixo no peito, mas meus olhos vêem tudo o que se passa nesse cenário de dementes, mesmo com as mechas encharcadas de cabelo descendo ao cenho. Eu sou só mais um careta aqui fora. Meus olhos captam cada acontecimento feito uma máquina digital disparando flashes invisíveis.

Civis desesperados correm da chuva aos berros, procurando marquises de estabelecimentos comerciais para se esconderem. Todos gritando sem parar, mãos para o alto como se o mundo tivesse acabando e não houvesse preocupação maior do que uma simples chuva para preenchê-los.

A cidade está acordada. Vejo quadradinhos acesos em paredes de casas classe-média afogadas no escuro enquanto minhas narinas identificam o cheiro de terra molhada vindo dos lotes vagos.

Algumas crianças estão por detrás dos vitrais das janelas de seus quartos, entediadas, observando o monte de agulhas decadentes sendo guiadas pelo vento e as bocas de lobo engolindo enxurradas por toda parte. Eu caminho na beira do asfalto, entre guarda-chuvas, placas e carros rasgando as poças que se formam nas ondulações de piche. Um deles molha meu jeans rasgado de propósito, e quando olho para trás o motorista me mostra o dedo médio, sumindo na próxima esquina com algo que parecia ser um calhambeque no meio dos outros carros.

A cidade é toda preta e branca. Cada detalhe ou movimento saindo das sombras das paredes de tijolos. Os pingos da chuva ricocheteiam no meu dorso acorcundado e meus olhos vermelhos estão captando tudo o que se move e está enterrado nas trevas. As lâmpadas dos postes bruxuleiam em cima de mim e a folha de cultura do jornal do dia tenta voar enquanto há vento para levá-la, mas os braços da chuva o apunhalam logo que ele sai detrás da cobertura e cai feito um passarinho atingido por um tiro de bodoque.

Pichações em todo canto dizem “foda-se a sua vida” em letras contorcidas, mas quando todos os postes da rua pifam de vez, elas somem debaixo do cobertor escuro regional.

Entro num pub vagabundo e peço uma xícara de café. A moça do balcão está de mau humor e me enche uma caneca inteira. Talvez tenha sido xingada pelo patrão há pouco e agora esteja dando o troco com uma espécie de prejuízo. Ela me cobrou uma caneca pelo preço de uma xícara e o mínimo que pude fazer em sinal de agradecimento foi pedir que descarregasse toda a sua raiva em cima de mim, desabafasse e chorasse do mesmo jeito que as nuvens estavam fazendo naquele instante.

Ao sair dali passo por um cemitério e ouço risos praticamente gritados saindo dos túmulos. Talvez sejam os mortos me chamando para o outro lado ou apenas góticos exibicionistas incomodando os vizinhos com suas seções nada secretas de magia negra.

Passo direto pela grade do cemitério de gramas brancas castigadas pelas braçadas de chuva, mas antes de eu deixar a calçada de vez vejo uma gárgula ofegante me olhando do escuro, de traços pálidos se desenhando nas profundezas e um par imenso de asas draconianas varrendo os pingos de água a lufadas assustadoras. A criatura ri, e só depois de ver suas presas afiadas cintilando no mar agitado de horrores é que viro as costas e atravesso a rua a passos ríspidos. Atrás de mim uma horda de góticos apavorados cruza o portão e sai do cemitério morrendo de medo, deixando para trás aparelhos de celular, bijuterias, velas e anéis com rostos de caveira, materiais de necromancia...

Os demônios notívagos da cidade preferem caçar durante noites chuvosas, e embora não os avistemos com frequência, sabemos que eles se escondem onde as trevas predominam.

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